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Joana Astolfi, onde a arquitetura
encontra a poesia do objeto.

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Arquiteta de formação, artista por instinto e designer por paixão, Joana Astolfi construiu uma linguagem singular que atravessa disciplinas, escalas e geografias. Ao longo de mais de duas décadas, o seu trabalho tem os contornos de um universo próprio — híbrido, sensorial e profundamente narrativo — onde cada projeto é uma história contada com matéria, cor e detalhe. Nesta entrevista, mergulhamos no processo criativo da fundadora do Studio Astolfi, descobrimos as raízes da sua estética inconfundível e espreitamos o que torna a sua obra tão imediatamente reconhecível — e, ainda assim, eternamente surpreendente.

Joana – arquiteta, designer, artista. Queres apresentar-te e explicar como tudo isto aconteceu?

O meu nome é Joana Astolfi e sou arquiteta, designer e artista. É uma grande fusão, não é? Bastante híbrido. Eu estudei arquitetura, em Inglaterra, e vivi em vários outros países. Durante 12 anos estive fora de Portugal – a ganhar mundo e bagagem. Também passei por Itália, onde integrei a equipa de Think Tank da Fábrica, que foi um processo muito imersivo e mudou a minha vida completamente.

Inicialmente, estava indecisa entre arte e arquitetura e decidi depois de uma conversa com o meu pai – que é arquiteto – e que me disse, sem me empurrar para nenhum caminho, “Se estás com a paixão igual, vai, garante essa base, porque a arte, já nasceste com ela e vai estar sempre contigo”. E foi muito bom, porque abriu-me muitas portas.
Durante o curso, que são seis anos, em Londres e em Gales, comecei a ter também gosto e paixão por outras áreas paralelas, como o design de produto, trabalhar noutra escala, trabalhar mais com objetos, dar mais atenção aos pormenores, desenhar as carpintarias ao pormenor, e aí surgiu esta paixão enorme pelo interior design. Foi aí que surgiu esse loop todo que hoje é o Studio Astolfi.

E, no início, não tinhas a intenção de construir um estúdio ou liderar uma equipa?

Não, no início não tinha a ambição de criar sequer um estúdio, com uma grande equipa…comecei o meu trabalho, lá está, com essa hibridez. Quando voltei da Fábrica – foi o último sítio onde eu estive –, as pessoas perguntavam-me, “mas o que é que tu és?” Perguntavam-me isso. “Tu és arquiteta? És designer? És artista? O que é que tu fazes?”. E é isso: é realmente um pouco disso tudo. Na altura não havia esta hibridez, hoje já há muito, não é? Mas eu fui muito fiel a essa vontade de cruzar essas áreas e a essa minha transversalidade.

Cresci com uma mãe galerista, com um pai arquiteto e, portanto, já havia essa hibridez na minha infância, no meu crescimento, na minha adolescência. Esses inputs foram muito importantes.

Como foram os primeiros anos do Studio Astolfi?

Então, eu comecei sozinha, depois com um colaborador, dois, cinco, e a trabalhar muito em projetos mais efémeros – exhibition design, umas lojas no Chiado, o Parque, que é um bar, a Calçada do Combro, com o rooftop. Projetos mais pequenos, mas onde havia realmente a hipótese de fazer bastante pormenor, trabalhar pormenor. E a desenhar objetos e peças, a colaborar em exposições, com galerias, etc. E, de repente, há dois pontos que são pontos de viragem no meu percurso. Um deles foi quando comecei a trabalhar com o José Avillez – primeiro a fazer intervenções de arte nos restaurantes dele, e depois também a desenhar, a fazer toda a arquitetura de interiores e reabilitação dos espaços. Uma grande viagem, super bonita também, porque fomos crescendo juntos, os dois, ele na gastronomia e eu na arquitetura.

Depois, o outro ponto pivotante, foi o princípio da nossa colaboração com a Hermès, com as montras, que são a minha grande paixão até hoje. Adoro interiores. A arte é a minha salvação. É onde eu começo e acabo tudo. Mas, realmente, as montras são um pouco de tudo, porque é uma arquitetura cenográfica em ponto pequeno. E é rápido. Começas a criar, desenhas, mandas, é aprovado, ‘bum’, começas a construir, a produzir, montas e desmontas. Eu gosto desse ritmo! E a arquitetura cansa-me um pouco. O ritmo da arquitetura, que às vezes é longo. São viagens muito longas, não é?

Tu começas por dizer que a tua definição enquanto profissional é um pouco híbrida, mas depois, no fim, a tua linguagem criativa é super marcante, é muito reconhecível. Como é que essa linguagem criativa se tem vindo a construir?

Todo o crescimento do estúdio e da minha linguagem tem sido muito umbilical, muito espontânea. Eu tenho muita paixão pelo que faço, sou muito curiosa, viajo muito, estou sempre a pesquisar, a escrever, a desenhar…E é isto que é preciso ter, realmente, para conseguirmos ir muito longe nas nossas áreas. Nós temos que ter muita paixão pelo que fazemos. E curiosidade, muito importante. Então, essa linguagem, ela foi sendo construída através desta vontade de ter sempre um pouco de brincadeira. Este playfulness está muito presente. É uma brincadeira muito séria, como eu costumo dizer. Portanto, isto tem muito rigor, é preciso muita consistência. Isso é muito importante dizer porque nós já fizemos mais de 300 projetos nestes 20 anos e há um fio condutor, há um rigor, uma atenção ao pormenor, um conceito, uma narrativa muito forte em cada projeto. Cada história é uma história, e é única, cada projeto é único, e eu acho que isso é uma coisa da qual me orgulho muito – esse rigor, essa consistência.

Portanto, isso passa pela paleta de materiais, pelas cores – a cor é fundamental no meu trabalho –, as texturas, o tato, o sensorial. Tudo isso são layers que têm vindo a moldar esta linguagem que hoje se chama Astolfi. Dá para identificar. As pessoas entram num espaço e muitas vezes podem identificar. Já vi, até já ouvi dizer – “isto deve ser da Joana Astolfi”. Isso para mim é a coisa que mais me faz feliz. E é o que eu quero deixar. É esse o património. Quando eu sair aqui deste layer, um dia, e viajar lá para cima para o paraíso, eu gostava muito que essa linguagem ficasse depois de mim, e que fosse inspiração para futuras gerações e para futuros criativos. Futuros e atuais.

Falaste já também de uma marca muito importante no teu percurso, a Hermès, que tem ela própria uma identidade muito forte, muito marcante. Que dificuldades é que tu encontraste? Em que ponto é que a tua identidade e a identidade da marca se encontraram?

A Hermès foi uma viagem muito bonita, comprida, foram 10 anos de viagem e agora são coisas mais pontuais, mas foram 10 anos muito juntos, eu sinto-me parte da família. Começou de uma forma muito espontânea: eu entrei na loja, perguntei se havia possibilidade de colaborar com eles, havia um concurso, eu participei, ganhei esse concurso e foi o princípio desta longa viagem. A Hermès é muito exigente, tem um sentido de conceito, de narrativa muito forte, e isso é muito bom para mim, para a minha linguagem. Nós encaixamos muito aí, porque eu também gosto de contar histórias com narrativas fortes, conceitos fortes. E digo sempre à minha equipa: “vamos sonhar muito alto”. E nas montras o céu não era o limite, era bem para além. Mas sempre com essa necessidade, essa vontade muito grande de executar as coisas. A ideia pode ser fortíssima, mas na execução se não há o rigor a montra não vinga.

Essa minha vontade de brincar, este playfulness, o humor, o lado lúdico do meu trabalho, cruza muito com a Hermès – eles gostam muito desse humor e, mais do que tudo, da poesia, da poesia por trás da mise-en-scène que criamos. Depois há todo um jogo ali, um equilíbrio muito delicado entre o que é que é a mise-en-scène que estamos a criar e o que é que são os produtos. Portanto, onde é que o produto respira, tem que haver espaço para o produto respirar, mas a mise-en-scène também tem que ter o seu impacto. Realmente as montras são uma galeria, um teatro a céu aberto. E é uma coisa muito bonita isso, porque toda a gente, literalmente toda a gente, tem a oportunidade de experienciar essa arte.

Sobre essa tua paixão por contar histórias e pela tua paixão pelos objetos, como é que tu identificas o potencial narrativo num objeto?

Bom, eu sou uma collector desde pequenina. Eu amo objetos. Não vivo sem objetos. Ando sempre com um objeto no bolso. Cada dia é um objeto diferente. Hoje, o que é que eu tenho aqui? Por acaso, tenho aqui uma joaninha que comprei para pôr aqui no meu casaco. Mas eu realmente sou muito ligada ao objeto. Porquê? Porque eu tenho um lado muito de material, de tato. Eu sou Touro, se calhar tem a ver com o meu signo também, não sei, mas realmente gosto de mexer, de tocar, de sentir a temperatura, as texturas dos objetos… E os objetos carregam muitas histórias. Eu amo histórias e tenho muitas memórias. E baseio-me muito nas memórias em tudo o que faço, basicamente.

Depois há também o lado estético. Eu adoro coisas belas. Eu vivo para o belo. O belo tem que ter consistência e densidade. Sempre. Então, quando o objeto tem essa carga da beleza, da memória, da história, e faz-me lembrar uma experiência, um momento que eu vivi, por exemplo, é fundamental. E adoro trabalhar também nessa escala –  é uma leveza para mim, é um breath of fresh air, quando posso fazer um espaço de 3000 m², mas depois, de repente, durante três semanas estar focada só em escolher os objetos que vão humanizar e habitar este espaço. Por exemplo, num hotel. Nós acabámos o hotel da Quinta da Vacaria no ano passado, e o layer da arquitetura de interiores ocupou muito tempo, muito espaço. Depois houve o layer do mobiliário e da iluminação. Escolher peças e desenhar peças com escalas maiores – mesas, cadeiras, sofás. E depois vieram os objetos decorativos, que foram mais de 6 mil objetos para o hotel, desde objetos de cerâmica, de vidro, de pedra, de palhinha, livros, tudo, todas as peças que vão habitar aquele espaço, tudo conta. E é isso que faz um espaço. É disso que as pessoas se lembram.

Qual é a tua memória mais colorida?

A minha memória mais colorida? É muito bonita essa pergunta… Bom, eu acho que os momentos mais coloridos da minha vida são aqueles em que desenho com a minha filha, Duna. Juntas, criamos um mundo imaginário onde tudo é possível — um lugar onde pintar fora das linhas é um gesto de liberdade, e as cores são celebradas sem regras nem medos.

Já falámos muito sobre a importância que a cor tem no teu trabalho, na tua vida. Há alguma cor proibida?

Ah, sim, sim. Eu nunca uso branco. Branco é proibido nos nossos projetos. Há coisas que são proibidas, tipo plintos, paletes, pufes, branco. Por acaso não começa com um P, porque muitas coisas começam com P. Mas o branco realmente é um no-gamer. É tal e qual como me dares uma página branca e dizeres assim: “olha, desenha aí uma casa”. Eu vou ficar a olhar para a página dias, porque eu preciso de um ponto de partida, preciso de contar uma história em cima de uma coisa que já exista. Dá-me uma pedra nesse terreno para eu começar. Para mim o branco é um bocadinho isso, assusta-me imenso. Tenho medo e realmente não é quente, eu preciso de alguma coisa que me aconchegue.

O teu trabalho está realmente muito ligado à cor, não é?

Eu já tive grandes conversas à volta de cor. E, realmente, as pessoas identificam-me muito também ligada à cor. Já fui conhecida como Joana Mizzle, porque eu usava muito o Mizzle, que era uma cor muito calma até, um verde in between. Eu era muito verdes. Gostava muito daquele mundo todo dos verdes. Mas agora, no último ano, entrei muito nos terracotas. Portanto, é interessante esta coisa da cor porque ela é mutante. Conforme as nossas inspirações, o nosso estado mental, a nossa vida, o nosso ritmo de vida, também a cor está lá. As cores também provocam emoções, provocam ritmos. A cor tem um ritmo. E é interessante isso.

Para terminar, eu queria só pedir se conseguias eleger três cores da coleção Antologia.

Então, eu tenho usado muito a coleção da CIN Antologia. Estou muito fã, não só da paleta, toda a cromática da coleção, mas também da qualidade das tintas, a textura é excelente, gosto muito mesmo. E as cores que eu gosto mais da Antologia são, o Terracotta, claro, adoro, tenho usado muito. O Terracotta juntamente com o Veneziano. Tenho que pôr o Veneziano aí porque eu gosto desse ton-sur-ton, muito. O Cipreste é uma cor bonita – usámos muito na Quinta da Vacaria, em 12, 15 quartos. É um verde presente, muito presente, mas que também te dá uma sensação boa, de espaço e de calma. E depois, para pormos um neutro aí no meio, nunca seria um branco-branco, eu escolho o Bege Coríntio. É muito elegante.